A preocupação com o bem-estar animal será um fator decisivo na sustentabilidade da pecuária de leite em um futuro muito breve. O que antes acontecia por força da legislação, hoje já começa a ser aceito por laticínios e empresas da cadeia produtiva do leite e crescerá muito, a partir de agora, pela pressão do mercado. A opinião é do diretor de negócios e desenvolvimento de pessoas da consultoria em qualidade alimentar neozelandesa QConz, Chris Leach. Uma das vozes mais ouvidas sobre o tema, ele não tem dúvidas: “As novas gerações de consumidores trazem consigo maiores expectativas de bem-estar animal, maior aceitação de novas pesquisas, de novas tecnologias e de mudanças nas práticas de gestão animal e de consumo”, afirma Leach.
Com 35 anos de experiência na área, e hoje trabalhando diretamente com a certificação de empresas com o selo do bem-estar animal, Chris Leach é um dos palestrantes convidados do evento on-line e gratuito “BEA Days – O Futuro do Leite”, que aconteceu nos dias 6, 7 e 8 de abril. Promovido pela agtech Ideagri, desenvolvedora de softwares de gestão pecuária, ela própria uma empresa certificada como “empresa amiga” do bem-estar animal.
“O movimento pelo bem-estar animal está crescendo por conta da internet, que deu visibilidade às práticas agrícolas e as redes sociais são hoje um fator chave para a mudança”, opina Leach. Segundo ele, cresce o número de consumidores que buscam alimentos de qualidade e seguros para comer e que tenham sido produzidos de maneira sustentável e ética, principalmente na forma como os animais de criação são tratados. Um efeito dessa pressão, segundo Leach, é que nos EUA e na Europa as redes de supermercados estão cada vez mais atentas à conformidade com o bem-estar animal, usando sistemas de controle e verificação para diferenciar alimentos provenientes de marcas que adotam essas práticas em seu sistema produtivo.
No futuro próximo, segundo Leach, as dificuldades dos produtores não estarão apenas ligadas à adoção das práticas de bem-estar animal em si. Um outro problema será a falta de pessoal capacitado para trabalhar nesse novo ambiente produtivo. “Equipes exigirão treinamento para aprender novas habilidades e conhecimentos e precisarão desenvolver atitude positiva e aspiração para promover mudanças”, explica Leach. Haverá, ainda, a questão da conquista da confiança dos consumidores. “Implementar boas práticas de bem-estar animal é uma coisa; comprovar para os consumidores de forma transparente e verificável que elas existem e funcionam é outra”, completa ele.
Leach informa que o Brasil hoje está classificado como D em uma escala A-G de proteção e bem-estar animal na agropecuária. “Houve melhorias recentes na legislação que regem o abate humanitário e o transporte de animais vivos, mas o país é criticado por não reconhecer totalmente que as vacas são seres sencientes”, diz o neozelandês. E ele faz um alerta aos produtores de leite brasileiros: a atividade passará por um escrutínio crescente, que forçará mudanças. “Mudar pode ser difícil, mas se o desejo é continuar com a pecuária leiteira, as mudanças são inevitáveis”, ele afirma, oferecendo uma mensagem otimista: “O lado bom do bem-estar animal é que ele promove a melhor saúde do rebanho, maior satisfação no trabalho, mais produção e maior lucratividade”.
Leia entrevista completa de Chris Leach abaixo:
Ideagri – Quais são os países onde o movimento pelo bem-estar da carne bovina / leiteira fez progressos mais substanciais e por quê?
Chris Leach – Os europeus lideram o progresso em bem-estar animal no Reino Unido, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Áustria e Suíça. O movimento é forte também nos Estados Unidos. A globalização está ajudando na unificação de critérios. Com apoio da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), a Federação Internacional de Laticínios (IDF) trabalha uma abordagem global comum sobre o bem-estar animal nos 182 países membros da OIE. Em 2019, a IDF lançou a segunda versão de seu Guia de Bem-Estar Animal para Produção de Leite, com recomendações e boas práticas sobre pecuária, ração e água, manejo, gestão do ambiente físico e da saúde.
Há, ainda, uma mudança gradual na forma como os padrões de bem-estar são promovidos. Depois de uma fase de regulamentação governamental com base científica, hoje é uma mudança muito mais conduzida pelo mercado. Nos EUA e em toda a Europa, o envolvimento regulatório é mínimo além do registro de incidentes de crueldade contra animais. Nesses países, são os supermercados que impulsionam a conformidade com o bem-estar, usando programas de garantia como Red Tractor, SPCA Blue Tick e F.A.R.M. para diferenciar alimentos provenientes de produtores com garantia de bem-estar.
Ideagri – Como é o status do movimento na Nova Zelândia em particular?
Chris Leach – Na Nova Zelândia, a regulamentação governamental para o bem-estar animal se baseia no Animal Welfare Act de 1999 e uma série de códigos e padrões mínimos de referência para os requisitos de pecuária, saúde e transporte. Mas na última década, houve mudanças de perspectiva regulatória, que permitem lavrar infrações e multas no local. Como em outros mercados desenvolvidos, os laticínios da Nova Zelândia estão indo além dos padrões mínimos, com maior envolvimento na adoção de “melhores práticas” de cuidados com os animais por meio de programas de garantia que recompensem os fornecedores com incentivos ao preço do leite.
Ideagri – E o Brasil nesse contexto?
Chris Leach – O Brasil hoje está classificado como D em uma escala A-G de proteção e bem-estar animal na agricultura. Houve melhorias recentes na legislação que regem o abate humanitário (2017) e o transporte de animais vivos (2017/18), mas o país é criticado por não reconhecer totalmente que as vacas são seres sencientes.
Ideagri – Qual é a principal força do movimento em todo o mundo? Opinião popular ou produtores com uma nova mentalidade?
Chris Leach – A abordagem das “Cinco Liberdades” para o bem-estar animal ainda é a base do padrão global. Mas só fornecer alimentação, cuidados de saúde, um ambiente que garanta que um animal não sofra e tenha uma “longa vida” não parece ser mais suficiente. Pesquisas provam que vacas são “seres sencientes”, que experimentam estados mentais positivos e negativos, podem ter relacionamentos positivos com humanos, reagem positivamente em grupos sociais apropriados etc. Reconhecer a senciência abre espaço para a abordagem mais progressiva dos “Cinco Domínios”, sendo que “qualidade de vida” é a medida que está se tornando o motor de mudança nas nações desenvolvidas. A internet deu maior visibilidade às práticas agrícolas e as redes sociais são um fator chave para a mudança. Consumidores querem alimentos de qualidade e seguros para comer, mas também esperam que tenham sido produzidos de maneira sustentável e ética, principalmente na forma como os animais de criação são tratados. A mudança geracional na base do mercado também ajuda nessa transformação. As gerações mais jovens trazem consigo maiores expectativas de bem-estar animal e uma maior aceitação de novas pesquisas, novas tecnologias e mudanças de práticas.
Ideagri – Onde a pressão popular é mais forte? Quais são os principais argumentos dos clientes engajados?
Chris Leach – Existem extremistas veganos, em pequeno número, que são contra toda atividade pecuária. Mas existem áreas de preocupação popular universal que são justificadas, como o uso de procedimentos cruéis ou desnecessariamente dolorosos; corte da cauda ou descascamento com cautério de ferro quente sem anestésico; confinamento de 365 dias por ano; separação do bezerro da mãe em idade precoce; uso profilático de antibióticos e de hormônios, como o BST, para prolongar artificialmente a lactação.
Ideagri – Quais são as razões econômicas que sustentam tal movimento? Esses argumentos são conhecidos ou compreendidos pelos produtores?
Historicamente, na Nova Zelândia, havia uma compreensão limitada do impacto financeiro das práticas de bem-estar animal. A mudança ocorria em grande parte pela aplicação de diretivas. Nos últimos anos, essa abordagem está mudando. Órgãos líderes e os laticínios defendem os benefícios das melhores práticas. Por exemplo, o uso de anestesia para desbastamento tem um custo. No entanto, o uso de anestésico reduz a restrição de crescimento do bezerro, o que significa que os bezerros podem ser desmamados mais cedo, resultando em uma economia líquida.
Ideagri – Quais serão as principais dificuldades para a indústria de leite e de carne e a cadeia de abastecimento?
Chris Leach – Dificuldades são esperadas. Na Nova Zelândia, por exemplo, devido ao tamanho médio relativamente alto do rebanho e abordagem sazonal da produção, temos desafios significativos como o que fazer com bezerros machos indesejados e a separação vacas/bezerros. E de uma forma geral, vejo duas consequências principais.
A primeira será a capacidade da equipe da fazenda em manejar os animais sob seus cuidados. Geralmente, pessoas não são cruéis ou negligentes, mas a equipe precisará de treinamento constante para aprender novas habilidades e conhecimentos, e precisará desenvolver atitude positiva e aspiração para promover mudanças.
A segunda será uma questão de comunicação. Implementar boas práticas de bem-estar animal é uma coisa, mas comprovar de forma transparente e verificável que elas existem e que estão funcionando é outra. Isso será a chave para fornecer a garantia que os consumidores, com expectativas crescentes, exigirão.
Ideagri – Você pode citar exemplos de oportunidades já existentes nos mercados em que o movimento está sendo adotado pela indústria?
Chris Leach – Houve mudanças recentes nas práticas agrícolas na Nova Zelândia, como a proibição de trauma contuso como método de abate, proibição do encurtamento da cauda por qualquer motivo que não seja lesão, o uso obrigatório de anestesia para descolagem, descorna e castração e restrição ao uso de bastão elétrico. Há também medidas que impõem limites na duração do tempo de transporte de animais, com rastreamento auditado, e a necessidade de instalações adequadas de manuseio ou carregamento de bezerros.
Ideagri – Se você pudesse dar um conselho para o produtor de leite brasileiro, qual seria?
A maneira como cuidamos dos animais passará por um escrutínio crescente e resultará na necessidade de mudar algumas das maneiras de fazer as coisas na fazenda. Mudar muitas vezes pode ser difícil, mas, no final das contas, se o produtor deseja continuar com a pecuária leiteira, essas mudanças são inevitáveis. O lado bom do bem-estar animal é que, na maioria dos casos, a mudança necessária promove, em última análise, melhor saúde do animal, maior satisfação no trabalho, mais produção e maior lucratividade.